ARTIGO ORIGINAL DE PESQUISA
Avaliação da deficiência seletiva de IGA em pacientes portadores de lúpus eritematoso sistêmico juvenil
Evaluation of selective IGA deficiency in patients with systemic lupus erythematosus
Blanca Elena Rios Gomes Bica I, Lina Maria Saldarriaga Rivera II, Carolina Valentim Soares III, Fernando Bráulio Ponce Leon Pereira de Castro III, Juliana Fragoso Pereira Pinto III, Juliana Serra Walsh III, Camila de Carvalho Figueiredo III, Mario Newton Leitão de Azevedo IV
I Professor
Adjunto da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro e
Chefe do Serviço de Reumatologia do Hospital Universitário Clementino
Fraga Filho
II Medica Reumatologista do Serviço de Reumatologia do Hospital
Universitário Clementino Fraga Filho, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Brasil
III Médico Residente do Hospital Universitário Clementino
Fraga Filho, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
IVProfessor Associado de Reumatologia da Faculdade de Medicina da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
Serviço de Reumatologia. Hospital Universitário Clementino Fraga Filho. Hospital Federal dos Servidores do Estado. Comunidade da Escola Nacional de Saúde Pública. Fundação Osvaldo Cruz. Instituto Nacional de Câncer. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Universidade Federal Fluminense, Brasil.
RESUMO
Introdução:
a imunoglobulina A é responsável pela proteção a
infecções dos tratos respiratório e gastrointestinal e
a deficiência seletiva de imunoglobulina A é a imunodeficiência
humoral mais comum. Especula-se que a sua ocorrência possa predispor
ao desenvolvimento de lúpus eritematoso sistêmico.
Objetivos: estudar a prevalência de deficiência seletiva
de imunoglobulina A nos pacientes portadores de lúpus eritematoso sistêmico
juvenil e comparar entre os grupos de pacientes com e sem deficiência
seletiva de imunoglobulina A, a idade e manifestações clínicas
à época do diagnóstico de lúpus eritematoso sistêmico
juvenil; o índice de atividade da doença à época
da análise dos níveis de imunoglobulina A; a história familiar
de doenças reumatológicas, autoimunes e/ou imunodeficiências
congênitas.
Pacientes e métodos: foram revisados os prontuários de
63 pacientes com diagnóstico de lúpus eritematoso sistêmico
juvenil segundo os critérios do American College of Rheumatology. Os
níveis plasmáticos de imunoglobulina A destes pacientes foram
dosados pelo método de nefelometria, sendo considerados baixos quando
menores que 70 mg/dL. Os dados demográficos e o perfil clínico-laboratorial,
além da história familiar foram obtidos através da revisão
dos prontuários.
Resultados: a deficiência seletiva de imunoglobulina A foi detectada
em 3 dos 63 pacientes (4,8 %). O perfil clínico-laboratorial do grupo
com deficiência seletiva de imunoglobulina A não foi significativamente
diferente do grupo sem deficiência seletiva de imunoglobulina A, não
sendo observada maior incidência de infecções neste grupo
de pacientes.
Conclusão: foi observada
maior prevalência de deficiência seletiva de imunoglobulina A nos
pacientes portadores de lúpus eritematoso sistêmico de início
juvenil em comparação com a população geral, sem
diferenças significativas entre o perfil clínico-laboratorial
dos pacientes com e sem deficiência seletiva de imunoglobulina A.
Palavras chave: Deficiência de imunoglobulina A, lúpus eritematoso sistêmico juvenil, imunodeficiências, doença reumatologica.
ABSTRACT
Introduction:
immunoglobulin A is responsible for protecting the infections of the respiratory
and gastrointestinal tracts, and selective immunoglobulin A deficiency is the
most common primary humoral immunodeficiency. It is speculated that their occurrence
may predispose to the development of systemic lupus erythematous.
Objectives: to study the prevalence of selective immunoglobulin A deficiency
in patients with juvenile systemic lupus erythematosus and compared between
groups of patients with and without selective immunoglobulin A deficiency, age
and clinical manifestations at diagnosis of juvenile systemic lupus erythematosus
and the index of disease activity at the time of analysis IgA levels, family
history of rheumatic diseases, autoimmune and / or congenital immunodeficiency’s.
Patients and methods: we reviewed the medical records of 63 patients
diagnosed with lupus according to the criteria of the American College of Rheumatology.
Immunoglobulin A plasma levels of these patients were measured by nephelometry
and were considered low when less than 70 mg/dL. Demographic data and clinical
and laboratory profile, and family history were obtained by review of medical
records.
Results: selective immunoglobulin A deficiency was detected in 3 of 63
patients (4.8 %). The clinical and laboratory profile of selective immunoglobulin
A deficiency group was not significantly different from the group without selective
immunoglobulin A deficiency and it was not observed higher incidence of infections
in this group of patients.
Conclusion: we observed a higher
prevalence of selective immunoglobulin A deficiency in patients with juvenile-onset
systemic lupus erythematosus compared with the general population, with no significant
differences between the clinical and laboratory profile of patients with and
without selective immunoglobulin A deficiency.
Keywords: immunoglobulin A deficiency, juvenile systemic lupus erythematosus, immunodeficiency, rheumatologic disease.
INTRODUÇÃO
A deficiência seletiva de Imunoglobulina A (DSIgA) é a imunodeficiência humoral mais comum entre todas as imunodeficiências primárias.1 Ela tem uma prevalência variável de 1/500 em caucasianos até 1/18.500 nos asiáticos.2
A DSIgA pode ser congênita ou adquirida. A deficiência adquirida tem relação com infecções pelo vírus da rubéola, Epstein-Barr, hepatite C, vírus da imunodeficiência adquirida.3 Também pode estar associada a doenças autoimunes como tireoidopatia, lúpus eritematoso sistêmico, artrite reumatoide, espondilite anquilosante, psoríase, vitiligo e púrpura de Henoch-Schönlein.4
A IgA é secretada por células dos tratos respiratório e gastrointestinal.5 Em alguns pacientes, a deficiência de secreção de IgA é concomitante com um aumento de IgM nas secreções, o que pode ser um mecanismo biológico de proteção e compensação. A sua ocorrência pode ser esporádica ou familiar, e neste último caso, pode haver um histórico positivo de anormalidades imunológicas na família.6
Especula-se que a ocorrência de deficiência imunológica possa predispor ao desenvolvimento de doenças autoimunes, porém o mecanismo pelo qual isso aconteceria ainda não está devidamente esclarecido. Existem poucos estudos a respeito da ocorrência da associação de deficiência seletiva de IgA em população portadora de Lúpus Eritematoso Sistêmico (LES) em adultos.7
Levando em consideração os dados na literatura que referem a possibilidade de haver maior risco de desenvolvimento de LES em pacientes com deficiência imunológica, foram analisados os níveis de IgA sérica total de pacientes portadores de LES juvenil acompanhados no Ambulatório de Reumatologia do Adolescente do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF) Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) com o objetivo de determinar a frequência da imunodeficiência nesta população. As manifestações clínicas à época do diagnóstico, a história familiar de doenças autoimunes e/ou imunodeficiências congênitas associadas e índice de atividade da doença (SLEDAI) foram investigados.
PACIENTES E MÉTODOS
Foram revisados os prontuários de pacientes com diagnóstico de LES juvenil (antes dos 16 anos de idade) que concordaram em participar do estudo. Todos os pacientes ou seus responsáveis assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) conforme as normas da Comissão de Ética em Pesquisa do HUCFF.
Sessenta e três pacientes que preencheram os critérios do American College of Rheumatology (ACR) para o LES tiveram seus prontuários analisados e foram coletadas as dosagens de níveis séricos de IgA.8 Foram considerados níveis baixos de IgA abaixo de 70mg/dL, e níveis elevados acima de 400mg/dL, dosados através da técnica de nefelometria.
O índice de atividade de doença foi avaliado durante o período de coleta da amostra sanguínea através do Systemic Lúpus Erythematosus Disease Activity Índex (SLEDAI).9
Foram avaliados os dados referentes à idade do diagnóstico do LES juvenil, tempo de diagnóstico do LES, número de critérios diagnósticos, histórico familiar de deficiência imunológica primária ou doença autoimune em familiares de até terceiro grau e nível sérico de IgA total. Os níveis de IgA encontrados fora da faixa de normalidade foram repetidos após pelo menos dois meses de intervalo, para confirmação do resultado.
Os critérios de inclusão foram o diagnóstico de Lúpus Eritematoso Sistêmico de início antes dos 16 anos de idade, segundo critérios do ACR, e a concordância do paciente e/ou responsável em assinar o TCLE.
Os critérios de exclusão foram a perda do seguimento do paciente devido ao não comparecimento ao ambulatório e a impossibilidade técnica de coleta de amostra sanguínea.
Os dados obtidos foram analisados pelo Teste Exato de Fisher (two-tailed).
RESULTADOS
Durante o período de estudo, houve maior prevalência de pacientes do sexo feminino com diagnóstico de LESJ, correspondendo a 90,4 %, contra 6 pacientes do sexo masculino, correspondendo a 9,6 % da amostra (p < 0,05). [Tabela 1]
A DSIgA foi detectada em 3 pacientes (4,8 %) sendo 2 do sexo feminino e 1 do sexo masculino.[Tabela 2]
Em relação à idade do diagnóstico de LESJ, houve maior prevalência do diagnóstico (85.7 %) após a puberdade.
Da amostra avaliada, 18 pacientes apresentaram histórico familiar de doença autoimune (28,5 %), sendo 8 pacientes com histórico familiar de LES, além de 3 com histórico de febre reumática, 3 com histórico de artrite reumatoide e 4 com histórico de tireoidites auto imunes. [Tabela 3]
Em relação aos pacientes com DSIgA, um paciente apresentou histórico positivo para LES (1,5 % em relação a amostragem total) e uma paciente teve histórico positivo para tireoidite (1,5 % em relação a amostragem total). O número de critérios diagnósticos de LES não interferiu na presença da DSIgA, como pode ser observado na tabela 4.
O perfil clínico-laboratorial do grupo com DSIgA não foi significativamente diferente do grupo sem DSIgA, não sendo observada maior incidência de infecções neste grupo de pacientes. Não houve associação de maiores índices de atividade da doença com a presença de DSIgA.
DISCUSSÃO
A deficiência seletiva de IgA (DSIgA) é a imunodeficiência humoral mais comum. Não se conhece o defeito básico responsável pela sua ocorrência, mas estudos sugerem que ele é transmitido por uma herança autossômica dominante com expressão variável.10 A frequência de DSIgA em pacientes acompanhados ambulatoriamente ou hospitalizados é de 0,03 a 0,25 %.11
A associação clínica entre LES e DSIgA foi descrita pela primeira vez em 1962.12 Depois em 1965 relataram um caso de uma adolescente de 15 anos com LES, com historia familiar de LES e títulos baixos de IgA.13
Em diversos casos, a DSIgA é relacionada com a presença de autoanticorpos no organismo, normalmente relacionados a doenças autoimunes. Nos casos relatados de pacientes com LES e DSIgA, observou-se a positividade do anticorpo antinuclear.14
Indivíduos com DSIgA, além de serem mais frequentemente acometidos por infecções do trato respiratório, gastrointestinal e urogenital, podem desenvolver doenças autoimunes e neoplasias malignas associadas. O mecanismo pelo qual ocorreria a predisposição a doenças autoimunes nestes indivíduos ainda não é totalmente conhecido. A função primária dos tratos gastrointestinal e respiratório é a absorção seletiva, que é dependente de um sistema imune atuante. A partir do momento em que a seletividade se perde, um número maior de antígenos nesses locais aumentam o potencial antigênico para iniciar reações imunopatológicas que resultam em dano tecidual e sintomatologia, como infecções de vias aéreas repetidas e diarreia intermitente.15
Defeitos no sistema imune são encontrados em portadores de doenças autoimunes, como por exemplo, deficiências das frações do complemento, tireoidites autoimunes, artrite reumatoide, anemia perniciosa e dermatomiosite.16,17
Ammann et al, encontraram em seus estudos com 30 pacientes portadores de DSIgA, apenas 1 paciente com LES. Em sua revisão de literatura com 80 pacientes foram encontrados 8 pacientes com DSIgA e LES, o que mostra uma proporção de 3 a 10 % de incidência de associação entre as duas condições clinicas, sugerindo que essa associação possa existir.18
Cassidy e colaboradores realizaram um estudo com 77 crianças e 152 adultos com LES, acompanhando esses pacientes por 20 anos e 1 ano, respectivamente. Encontrou 12 pacientes com DSIgA e todos possuíam anticorpos anti-DNA séricos. A IgA estava em nível baixo em 8 pacientes com LESJ e 4 com LES na sua forma adulta. Em sua conclusão, os autores estimaram que a frequência de associação entre LESJ e DSIgA era de 5,2 % e entre LES e DSIgA era de 2,6 %, havendo assim um acréscimo 35 vezes maior na incidência em comparação com a população geral, que tem uma incidência de DSIgA de apenas 0,1 % 6. Além disso, em seu seguimento, não foram observadas diferenças significativas nas apresentações clínicas e nos cursos de doenças entre os pacientes com LES portadores ou não de DSIgA. Apenas supôs-se uma possível associação entre LES, DSIgA e infecções de repetição de vias aéreas superiores e inferiores.19
Por outro lado Naspitz et al, descreveram um estudo sobre determinação quantitativa por imunodifusao radial de IgG, IgM e IgA realizada em 280 soros em crianças normais cujas idades variaram de recém nascido a 13 anos. Os resultados obtidos foram comparados com os níveis de 30 adultos normais. A IgA sérica foi detectada em 12,5 % dos soros de cordão. Os dados obtidos neste trabalho pioneiro não mostraram diferença ente os sexos, e permitiram caracterizar estados de imunodeficiência em crianças brasileiras.20
Após a análise dos dados coletados, podemos concluir que a amostra de pacientes com Lúpus Eritematoso Juvenil do HUCFF apresenta prevalência de 4,8 % de deficiência Seletiva de IgA. Observando-se a prevalência de DSIgA na população, que é de 0,03 a 0,25 %, podemos concluir que a DSIgA é cerca de 40 vezes mais prevalente na população com LESJ.21,22
Ao analisarmos os dados referentes a presença de histórico familiar de doenças reumatológicas e/ou auto imunes, podemos avaliar que 28,5 % da amostra apresentaram pelo menos um familiar com histórico positivo, sendo 4 homens e 14 mulheres. Destes 18 pacientes, prevaleceu o histórico de Lúpus Eritematoso Sistêmico (LES), presente em 8 pacientes. Dado relevante foi o de que para os 4 pacientes masculinos que apresentaram histórico familiar positivo, todos o apresentaram para LES. Em relação às mulheres, houve distribuição homogênea para histórico de LES, febre reumática, artrite reumatoide e tireoidites autoimunes.
Não houve diferença estatisticamente significativa entre o número de critérios diagnósticos apresentados, as manifestações clínicas apresentadas à época do diagnóstico entre as amostras analisadas, nem houve associação de maiores índices de atividade da doença com a presença de DSIgA.
CONCLUSÕES
Pacientes com lúpus eritematoso sistêmico juvenil têm maior prevalência de DSIgA que a população geral. Nosso estudo demostrou uma prevalência de DSIgA em pacientes portadores de Lúpus Eritematoso Juvenil de 4,8%. Embora seja uma relação muito baixa, é de extrema importância reconhecer esta associação dada a alta morbidade e mortalidade pelas infecções do trato respiratório, gastrointestinal e urogenital que sofrem estes pacientes, além de desenvolver também doenças autoimunes e neoplasias malignas associadas.
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Declaração
de fontes de financiamento e possíveis conflitos de interesse.
Não há conflitos de interesse.
Fonte de Financiamento: Nenhuma.
Recebido: 25 de
marzão de 2015
Aprovado: 28 de abril de 2015
Publicado: 30 de abril de 2015
Autor responsável:
Dra. Lina Maria Saldarriaga Rivera. E-mail: vasculitisreumato@gmail.com
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